segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O descaso mata mais que as drogas

No último dia das crianças fomos chocados com a notícia da morte do garoto Enilson Alves de Souza, de apenas 12 anos. Mais uma morte colocada na conta das drogas, como se fossem realmente as drogas que tivessem matado o garoto. Esse tipo de conclusão superficial é um desrespeito à memória de todos que tiveram sua morte explicada dessa maneira, pois quando se demoniza uma substância como se faz com as drogas ilícitas, cria-se um mostro intangível muito difícil de ser combatido.
De fato, não é esse monstro alimentado de medo que ceifa a vida de tantas pessoas. Essas mortes são consequências da política de proibição à algumas substâncias, conhecidas como drogas ilícitas, adotada por tantos países como o Brasil.
Desde sempre o ser humano consome drogas que alteram o funcionamento de seu Sistema Nervoso Central. Durante toda a história da humanidade essas drogas serviram a vários fins: transcendência religiosa, usos recreativos, manutenção da atenção e do estado de vigília, e, desde o mercantilismo sempre esteve cercada de grande interesse comercial. Somente no fim do século XIX, com o advento da farmacologia industrial revolucionando a medicina e cerceada por vários fatores econômicos e culturais, algumas dessas drogas, que eram amplamente consumidas, passaram a ser proibidas. Surgiu a diferença entre fármaco, drogas lícitas e drogas ilícitas.
Só que a proibição não faz com que as pessoas parem de querer consumir drogas. Pelo contrário, para alguns, em especial os jovens, aquilo que é proibido passa a ser muito mais sedutor. Um exemplo interessante dos efeitos nocivos da proibição aconteceu na década de 20 nos EUA, com a Lei Seca. Apesar de proibido, ainda existia uma grande demanda de consumo do álcool. Sem fiscalização de qualidade ou taxação de impostos, criminosos como Al Capone dominaram essa fatia de mercado pela força, aumentando os índices de violência e ficaram muito ricos às custas de uma brecha do Estado. Depois de cerca de 10 anos de Lei Seca, quando o consumo de álcool voltou a ser permitido, as taxas de criminalidade caíram para os índices de antes da proibição.
Recentemente estudos mostraram que a maior parte dos detentos que lotam as penitenciárias de todo o Brasil estão presos por crimes relacionados ao tráfico de drogas. A proibição inventou o tráfico, e este segue as próprias leis, regulando-se por meio da violência e alimentando uma rede de investimentos mal feitos de combate e repressão ao uso e comercialização de drogas. Promete-se muito mais repressão como combate à criminalidade e isso significa mais e mais investimentos pouco eficazes. Investimentos que poderiam estar sendo feitos na educação ou na saúde, melhorando, por exemplo, a situação dos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) de Goiânia, como o que o menino Enilson frequentava. Os CAPS são as melhores alternativas para o tratamento de uso problemático de drogas, mas sem investimentos, não podem realizar um bom trabalho. É esse descaso que mata mais que as drogas, porque todos nós somos potencias vítimas dele.

Fernando Reis é Psicanalista e mestre em Psicologia Social.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Minha mãe mentiu para mim

(01/16)

 Às vezes, quando eu era criança e tinha um pesadelo, acordava assustado, chorando. Minha mãe prontamente vinha até mim me acalentar dizendo que era só um pesadelo e que tudo ia ficar bem. Eu acreditava no que ela me dizia e conseguia voltar a dormir. Essa promessa me veio a mente nesses últimos dias com o pesadelo que foi a retrospectiva de 2015. Tivemos de tudo o que jamais esperaríamos ter na nossa sociedade tão desenvolvida: professores sendo espancados pelo Estado, o fundamentalismo religioso matando e mostrando ao mundo em vídeos de alta resolução, cifras bilionárias que foram desviadas dos cofres públicos em um ano em que a crise econômica se agravou em nosso país, um crime ambiental que foi capaz de matar um rio inteiro e condenar à morte toda a população que dependia dele, corrupções em suas mais diversas formas, enfim, barbárie.
E o que deixa esse pesadelo de retrospectiva com um tom mais aterrorizante é a superficialidade em que os assuntos são tratados pela mídia e pela maior parte da população. A crise econômica e política se reduz a uma briguinha entre dois times, nós versus ele. O atentado terrorista internacional brigou nas redes sociais contra a tragédia ambiental nacional. E depois de toda a comoção e passionalidade com o que os temas foram tratados, depois de um tempo são simplesmente esquecidos. Como uma criança que acorda de um pesadelo e ouve que tudo vai ficar bem.
É assim que se segue, num presente contínuo, desconectado de qualquer passado que explique e justifique como e porquê as coisas se dão dessa maneira. Estamos sempre caminhando na promessa mágica de que tudo vai ficar bem, independente do que se faça. E na virada do ano essa promessa fica mais forte, como se precisássemos mais dela. “Vai tudo ficar bem”, repetimos delirantemente, “vai ser um feliz ano novo”.

Assim como os pesadelos que eu tinha na infância eram manifestações inconscientes de desejos não conciliados, as tragédias ocorridas ano a ano são consequências de escolhas e desejos não admitidos explicitamente. Fazemos o que fazemos, fechamos os olhos para as consequências de nossos atos e no fim de cada ano repetimos o mantra de que “tudo vai ficar bem”. Eu não acredito! Nossas mães mentiram para a gente e nós seguimos repetindo a mesma mentira. Não vai ficar tudo bem.

Fernando F. S. Reis

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Sem título

E mais uma vez, paro meu carro, e em meu lugar secreto, me deito a luz da lua e das estrelas e deixo minha mente voar, navegar por mundos, pensamentos e mistérios inexplorados, não mais me preocupando com as leis da física e com respostas jamais ditas. Aqui nesse momento, não existem barreiras ou distâncias e o tempo a muito deixou de existir, e a dor... A dor ainda esta lá, porém apenas como uma breve lembrança, de um mundo que se perdeu. Como um sussurro de que há e sempre existirá humanidade...
Deixo minha mente me levar, sem me preocupar, sem pensar, não me importando com uma realidade que não há. Flerto com as estrelas e me entrego a alucinante dança, daquelas que são filhas da lua, compartilho seus segredos, aprendendo aquilo que, dos seus mistérios me permitem aprender. Me agarro a esse momento com voracidade, porém cuidado e sorrio ao pensar que, não há lugar melhor para estar, para redescobrir o que foi perdido no tempo. E por quê? Justamente porque aqui o tempo não existe, aqui o novo e o eterno coexistem com graça e terror, com poder, com desenvoltura, com uma sabedoria que, me envolve em um abraço de reconhecimento, de compreensão e com gentileza sou jogado de encontro ao me próprio corpo, com promessas de novos encontros, com desafios sussurrados e com pedidos...
Redescubro o mundo a minha volta, e encontro lágrimas .. Minha memória me trai, mas me coração incendiado por aquele encontro, aquece minha alma. E me lembra de fragmentos de segredos, do sussurro de promessas e de palavras que, hoje não direi aqui!


OPF - 27/11/2012



quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Não tenho vazio porque não penso




nao tenho um vazio pq nao penso,
nao tenho um vazio pq nao existo,
porque me completo de duvidas,
porque talvez seja eu pura loucura.

quem me criou?
DEUS? deus ja nao ha!
o que existe em seu lugar...
duvidas, medo..... morte
estou no mundo ao acaso?
pura sorte?

"quem sou eu quem eh vc... no fim vc nao chegou nem a viver"
se nao existo, como podes ler isto?
talvez vc tbm nao exista...
sou egoista, sou egoista.

morro morte matando matar...
cada coisa em seu lugar
cada coisa pra nos unir nos separar...
somos um so?
ou nao somos nada?
somos uma grande piada...
pra quem?
quem eh q da risadas?
com a desgraca humana
de nao sabermos nada...
somos uma grande piada...
para Deus.


Chico dos Santos

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Tempo seco



                
-Ele veio para cá ainda mais cedo depois da bebedeira. Tenho certeza de que não se afastou para muito longe, aposto que buscou algum lugar mais escuro para dormir e desfazer-se da culpa.
                -Culpa?
               -Sim, ele brigou com várias pessoas hoje à noite, além disto, cometeu sérios tipos de impropérios. Disse que os maconheiros da USP deviam ser todos enforcados e mereciam ter apanhado da polícia.
                -Mas eles mereciam mesmo.
                -Este tipo de coisa não se diz a torto e a direito por ai. Ninguém está nem ai para a sua opinião a não ser que ela seja totalmente irrelevante.  É por isso que o único assunto na moda hoje em dia é falar sobre arte e mais arte.
                -A sua opinião sobre arte que é irrelevante.

Continuamos andando por dentre a escuridão da madrugada, os nossos braços entrelaçados uns nos outros e as mãos apertadas tremendo de frio e de medo. Nesta hora da noite é sempre bom ter medo, mesmo que toda a cidade estivesse dormindo como uma criança. Uma vez uma pessoa me disse que São Paulo era uma cidade que nunca dormia, acho que Madrid era assim também, a pessoa que me disse isso era tão ignorante que nem sabia falar direito o nome da cidade.  Não faz diferença no final, não muda o fato que acho ridículo uma cidade não dormir. A sensação de que a vida não irá recomeçar é angustiante, somente é reconfortável para quem tem a cabeça muito afastada do pescoço, aquele tipo de pessoa fascinante e nem um pouco confiável.

-Você está muito apressado. Eu comprei este salto ainda ontem, ele está me machucando os pés.
-Isso que dá passar boa parte do tempo andando como um homem. Vestindo tênis e calças jeans soltas. Quando se quer voltar a ser mulher, o seu corpo não aceita fácil.
-Você tem sempre uma teoria idiota sobre tudo. Sempre uma opinião desleixada e ambígua que não esconde o fato de não ter nada a dizer.
-Se não tenho nada a dizer então porque ainda conversa comigo?
-Eu gosto de você, beija bem e é carinhoso. Além disso, é fiel aos seus amigos, por quais outros motivos estaríamos andando no centro de madrugada procurando um bêbado?
-Ele me deve dinheiro.
-Mentiroso.

Chegamos bem perto do que parecia ser uma boate gay daquelas de mais baixo nível. Estar entre os gays sempre me deixou pra cima, minha vontade era de chegar e pegar um deles de jeito, mas nunca tive coragem ou até mesmo ânimo. A melhor forma de não se entediar com uma coisa é não se aproximar dela demais, deixando-as no campo da expectativa elas continuavam mais coloridas. Pra falar a verdade, sempre fui fascinado por gays porque sempre me dei mal com as mulheres, tão instáveis e irresponsáveis, muito parecidas com minha mãe.
Meu amigo só poderia estar lá dentro. Eles abaixavam muito o som nesta hora da noite, como uma forma de gradualmente esvaziar a casa. Quem é bom bebedor sabe que esta é a melhor hora para secar cervejas com tranqüilidade, a música é suave, sem muitos daqueles efeitos e não tem tanta gente em volta para ficar te olhando desconfiado. Seria o lugar perfeito para terminar uma noite mal sucedida.
-Aqui.
-Aqui?
-Sim, aqui.

Ela não respondeu, nem se atreveu a confirmar com a cabeça. Com certeza achou péssima idéia entrar naquele lugar e pagar ainda uns 10 paus para o veado de terno e gravata, com uma arma na cintura. Naquela época ninguém tinha grana pra nada, e se você trabalhava com arte ai é que você não tinha nada mesmo, a parte mais interessante de mexer com esse tipo de coisa é que você nunca tem dinheiro para pagar o que produz.
 Lá de fora eu já conseguia ver o meu amigo sentado em um sofá encardido no canto inferior da sala, eu até que evitaria entrar se já não tivesse pagado os 10 reais que guardei para voltar de taxi para casa.   
-E ai?
-Beleza?
-Tranqüilo.
Sentamos ao mesmo tempo um de cada lado. Meu amigo sentiu-se desconfortável por um bom tempo com a situação, mas logo ficou como se não tivesse ninguém além dele no recinto. Um casal de homens rodava no saguão ao som de alguma merda dos anos 70, eu dançava isso quando era mais novo, hoje eu só vou para as festas se for pra beber.
-Eu fodi com tudo não foi?
-Bem, ela não vai falar com você por um bom tempo, mas isso não quer dizer nada.
-Eu a amava. Sabia?
-Você não ama ninguém desde que escolheu ser psicanalista.
-Eu não escolhi ser psicanalista e nem alcoólatra.

Ele estava certo, este tipo de situação acontece com você somente quando se menos espera. Uma vez ouvi falar que existem tipos de câncer que chegam pelos genes, tipo informações erradas que estavam já escritas na sua fórmula básica desde quando ainda era um feto. Somente alguém com um gene desse pode ser errado o suficiente para se tornar um bom psicanalista, o alcoolismo, bem, este vinha de brinde e era o que dava o charme da coisa.
-Eles já estão fechando e vão nos expulsar daqui a pouco.
-Vocês podem beber só mais uma comigo? Prometo que logo depois dessa eu vou embora pra casa.
-E você vai embora como? Porque não fica em nossa casa, temos espaço na sala e um colchão embaixo do sofá.
-Eu tenho medo que o seu gato me fure os olhos enquanto durmo. Eu li algo parecido com isso em um texto do Freud e vivo assustado desde então.
-Nós podemos ficar somente parados no meio da rua esperando o sol amanhecer, e alguma padaria abrir. Já é bem mais tarde do que parece.
-Cara. Muito obrigado. Vamos embora daqui.

Levantou sem muita dificuldade e foi direto ao caixa disposto a pagar não somente sua conta como nossas entradas. Ela foi logo atrás mancando em um pé só e tentando impedir que pagasse nossa parte, se os dois estivessem juntos até que dariam um bom par, eu então usaria o sofrimento da separação para me tornar um escritor com maior peso em minhas obras ou um bêbado bem elegante. O ciúme é a acidez do vinho, o tanino é o gosto da rotina.
Lá fora o sol já nascia bem devagar, os barulhos dos carros haviam cessado por completo. Dezenas de pequenos periquitos verdes como as folhas se escondiam por entre as árvores, denunciando sua presença com o seu canto desengonçado. Uma pessoa treinava alguns acordes tristes em um violão perdido entre os prédios. Enquanto isso, meu amigo andava a frente catando os pedaços de vida que os raios solares depositavam sobre as ruas, eu e ela andávamos mais atrás os ombros colados um no outro.
-Você me devia um nascer do sol.
-O sol devia um destes para todos nós.
Às 6 horas da manhã, meu amigo e nós brincávamos de gente grande nas avenidas de Goiânia. Os primeiros carros começavam a aparecer anunciando que o  novo dia seria quente, seco e indiferente.
Para Eloy San Carlo. 


Diego Roberto de Lima

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Fotografia



Coloquei-a no mais nobre
lugar da estante da sala.
Entre os livros e os troféis.
Entre os gritos dos fiéis
busquei um silêncio
incrédulo, desacreditado.
Entre os gemidos do orgasmo
busquei a razão
tardia, vadia.
Sem vergonha de admitir
que ri, sofri
e ainda sofro ao vê-la ali,
na estante ou em qualquer lugar,
me olhando sem me julgar
Sem desculpas para me culpar,
sem motivos para chorar.
Aquele lugar talvez não seja tão nobre,
aqueles troféis talvez vieram por sorte,
e aqueles livros que eu ainda não li,
nem eles, nem ela deviam estar ali.
Contudo não há mais onde
e nem porque correr.
Não há mais como
e nem porque fugir.
Na sala espalho a prisão que construí.
De frente a estante da sala, pendurado na parede, foi onde morri.

Fernando Reis

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Cigarro nas mãos





Tudo o que ele queria naquele frio era uma bebida quente. Uma dose de qualquer coisa que o esquentasse por dentro e, a medida que fosse descendo queimando, fosse também preenchendo aquele vazio sem graça que ele sentia, e que ultimamente tanto o incomodava. Imaginava-se, enquanto no ponto de ônibus  com um copo com whisky sem gelo numa mão e na outra um cigarro segurado entre os dedos. Claro que não se imaginava num ponto de ônibus  como estava. O cenário de seus sonhos sempre era algo combinado com couro e madeira, transmitindo um conforto que ele nunca teve, mas supunha ser muito bom. Contudo, ele não fumava. Pelo contrário, detestava a fumaça do cigarro e o seu cheiro impregnante. Entretanto algo naquela fumaça o encantava. O esbranquiçado que saía da boca dos outros, como fantasmas dançando no vento, rodopiando e se desfazendo, desaparecendo no ar logo depois, era algo que ele queria que saísse de sua boca. Isso porque era mais fácil sair a fumaça do que qualquer palavra coerente ou história interessante. Ah, ele estava tão vazio! Não havia nada que o fizesse queimar, além dos sonhos. E nos sonhos ele se queimava aos poucos, como um cigarro acesso, esquecido na mão de alguém mais concentrado em alguma conversa.
Ele agora sonhava estar dirigindo seu carro de luxo, já que o ônibus naquele dia demorava mais que o costume. Vestindo roupas caras e despretensiosamente elegantes, ele era um sujeito incrível em seus sonhos. Cercado de amigos, era só ele quem falava. Falava o que? Nem sequer conseguia pensar em um diálogo. Apenas ria e fazia com que seus amigos também rissem. Aquela cena, vista de uma outra mesa do bar que ele sonhava estar, refletia somente a felicidade. Que sujeito admirável esse, cercado de amigos e visivelmente bem-sucedido na vida. Será que esse cara um dia esperou um ônibus no frio? De repente ele já não era esse sujeito. Estava apenas na mesa ao lado, observando o cigarro desse homem, que se queimava lentamente, esquecido pela conversa interessante.
Os carros que passavam por ele, que estava parado na calçada esperando o ônibus,  levantavam o ar sujo do asfalto, jogando contra ele toda a frieza daquele dia. E a cada carro que passava, a cada nuvem de fumaça levantada, ele se lembrava dos seus desejos, que eram substantivos, coisas, objetos que ele poderia ter. Os carros e as roupas não eram diferentes dos amigos e das risadas que davam. Tudo era tão falso e ainda sim tão brilhante, que ele, que era aquele sujeito rindo no bar, mas que também era o que observava da mesa ao lado, experimentava uma mistura de raiva e inveja, tanto por saber que aquilo não era real quanto por saber que nunca teria aquilo. Ele queria ter, pois ter, era sua única esperança.
O seu olhar, há muito tempo, estava fixado no fim da rua, de onde o ônibus viria. O tempo frio era presságio da chuva que ameaçava cair a qualquer momento. Contudo nem ônibus e nem chuva ele via. Só conseguia enxergar aquele cara da outra mesa, cercado de whisky, cigarros, carros, roupas e amigos. Tudo ali se completava. A música combinava com as risadas, a jaqueta de couro combinava com a mesa de madeira, que por sua vez combinava com o copo de whisky que combinava com o cigarro. Porém tinha algo que não combinava com o que ele sonhava sempre. Ele não estava fumando o cigarro que segurava, e que continuava queimando aos poucos. Então de repente, todos os amigos e risadas saíram de foco quando uma brasa caída do cigarro lhe atinge a pele: ele se viu na mesa ao lado, se observando raivoso, invejoso e despido de qualquer bem. Era só ele e seus sentimentos como um reflexo num espelho que ele não esperava encontrar. Ao se ver assim com raiva, cobiçando seus bens ilusórios viu-se no seu olhar e se reconheceu menor do que supunha, quase insignificante. Sentiu-se como a fumaça do cigarro.
Quando algo ia fazendo sentido, o ônibus rompe do seu lado e a pequena multidão que o esperava se apressa para entrar e garantir o seu lugar naquele condensado de gente. Ele segue o fluxo, um pouco desnorteado e logo está em pé no coletivo, buscando um ponto de equilíbrio para enfrentar os sinais e curvas da cidade. Depois de todos embarcados, parti o ônibus carregado de gente e sonhos. E ele, sem se lembrar onde estava no seu devaneio, volta a imaginar como seria bom ter um carro, um carro de luxo e um cigarro nas mãos.


Fernando Reis